Robert Decker
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto1
João Calvino condenou a missa do Catolicismo Romano em termos em nada ambíguos. "De todos os ídolos, ele não conhecia nenhum tão grotesco como aquele no qual o sacerdote evocava Cristo em suas mãos pela ‘enunciação mágica’ e oferecia-o novamente no altar do sacrifício, enquanto o povo olhava com ‘admiração estúpida’."2 Calvino formulou suas idéias sobre adoração (liturgia) baseando-as sobre a clara garantia da Escritura e apelando ao costume invariável da igreja primitiva.3 O reformador concluiu: "Não se fazia nenhuma reunião da Igreja, sem a Palavra, as orações, a participação da Ceia e as esmolas."4
Os primeiros esforços de Calvino na reforma da adoração da igreja apareceram na edição de suas Institutas de 1536:
Deixando, pois, de lado todo este sem fim de cerimônias e de pompas, a Santa Ceia bem que podia ser administrada santamente, se com freqüência, ou pelo menos uma vez por semana, se propusesse à Igreja como segue: no início se faria orações públicas; a seguir viria o sermão; então, postos na mesa pão e vinho, o ministro repetiria as palavras da instituição da Ceia; depois, reiteraria as promessas que nos foram nela anexadas; ao mesmo tempo, vedaria à comunhão todos aqueles que são dela barrados pelo interdito do Senhor; após isto, se oraria para que o Senhor, pela benignidade com que nos prodigalizou este alimento sagrado, também nos receba em fé e gratidão de alma, nos instruindo e preparando; e, uma vez que por nós mesmos não somos dignos, por sua misericórdia aprouve nos dignificar para tal repasto.
Aqui, porém, ou se cantariam salmos ou se leria parte da Escritura, e, na ordem que convém, os fiéis participariam do sacrossanto banquete, os ministros partindo o pão e oferecendo-o ao povo. Terminada a Ceia, se faria uma exortação à fé sincera e à sincera confissão dessa fé, ao amor cristão e ao comportamento digno de cristãos. Por fim, se daria ação de graças e se entoariam louvores a Deus; findos os quais, a congregação seria despedida em paz.5
Calvino nunca se desviou dessas idéias, mas somente as expandiu na edição final das Institutas. Observe que Calvino insistia sobre a celebração freqüente da ceia do Senhor. Ele queria que a mesma fosse celebrada todo Dia do Senhor [Domingo]. Durante o primeiro pastorado de Calvino em Genebra, ele e Farel propuseram num documento intitulado "Artigos Concernentes à Organização da Igreja e da Adoração em Genebra" que a igreja seria edificada por dois meios especialmente, a celebração freqüente da ceia do Senhor e o exercício da disciplina. Por causa da "debilidade do povo", os Reformadores resolveram realizar a comunhão mensalmente. Mais tarde, em 1541, quando Calvino retornou à Genebra, ele tentou introduzir a liturgia que usou em Estrasburgo. Calvino tentou novamente introduzir uma comunhão semanal, crendo que não "havia nada mais útil para a igreja que a Ceia do Senhor. Deus mesmo, Calvino cria, uniu a ceia com a sua palavra e, portanto, era algo perigoso separá-las." O concílio de Genebra, para desalento de Calvino, insistiu numa celebração trimestral da ceia do Senhor. Calvino continuou a expressar sua insatisfação, declarando mais tarde, em 1561: "Nosso costume é falho."6
Como é evidente a partir de sua declaração nas Institutas de 1536, a liturgia da comunhão de Calvino continha quatro elementos fundamentais. Esses elementos, o leitor Protestante Reformado7 reconhecerá, foram retidos intactos na Forma para a Administração da Ceia do Senhor.8 9 Eles são: repetição da instituição do Senhor como a garantia do sacramento; proclamação das promessas do Senhor que se relacionam com a sua ordenança e suprem significado e realidade aos seus sinais; excomunhão dos pecadores obstinados; e ênfase sobre a participação digna do sacramento e santidade de vida.
Com algumas exceções, somente os Salmos eram cantados, e isso sem acompanhamento instrumental. Concernente aos instrumentos, Calvino cria que "eles faziam parte daquele sistema de treinamento sob a lei, ao qual a Igreja esteve sujeita em sua infância," e, "não deveríamos imitar de maneira tola uma prática que foi planejada apenas para o povo antigo de Deus."10 Aliás, somos gratos que a visão de Calvino sobre esse assunto não tenha prevalecido na tradição Reformada Holandesa.
A ordem da adoração de Calvino começava com o ministro falando as majestosas palavras: "O nosso socorro está em o nome do SENHOR, criador do céu e da terra. Amém". Isso era seguido por uma oração de confissão. Essa era uma breve oração (escrita) lida pelo ministro enquanto a congregação estava de joelhos.11 Após isso, o ministro leria algumas promessas escriturísticas de perdão, e logo após pronunciaria a absolvição,
Que cada um de vocês reconheça-se verdadeiramente um pecador, humilhando-se diante de Deus, e crendo que o Pai celestial deseja ser gracioso para contigo em Jesus Cristo. A todos que dessa forma se arrependem e buscam a Jesus Cristo para sua salvação, declaro a absolvição em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.12
A absolvição não era usada em Genebra. Após a confissão de pecado, a congregação cantava os Dez Mandamentos como um guia para a obediência grata do cristão perdoado.
Durante o cântico, o ministro deixava a mesa e ia para o púlpito. Ali se preparava para a leitura da Escritura e a pregação, oferecendo uma oração por iluminação. Essa e a oração de aplicação após o sermão eram as únicas orações "livres" na liturgia de Calvino. Todas as outras orações eram orações escritas. E, mesmo para essas duas orações livres, Calvino oferecia aos ministros vários modelos. Após a oração de aplicação, o ministro oferecia a oração congregacional. Essa oração era concluída com a oração do Senhor, que em algumas congregações era cantada pela congregação.
Então, a congregação se levantava para cantar o Credo Apostólico. Nesse ponto a congregação era despedida com a bênção de Aarão, baseada em Números 6:24-26: "O SENHOR te abençoe e te guarde; o SENHOR faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o SENHOR sobre ti levante o rosto e te dê a paz," e com uma palavra sobre esmolas: "Lembre-se de Jesus Cristo em seus pequeninos."13 14
Em Genebra, nos quatro Domingos quando a ceia do Senhor era celebrada, a mesma ocorria após o sermão. Quando a ceia do Senhor terminava, e antes da bênção ser pronunciada, a congregação cantava o cântico de Simeão: "Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo … porque os meus olhos já viram a tua salvação" (Lucas 2:29-30).15
Os princípios de liturgia de Calvino e a essência de sua ordem de adoração permanecem em uso para os membros das Igrejas Protestantes Reformadas. Existem algumas diferenças nos cultos. Por exemplo, não nos ajoelhamos para orar, não cantamos o Credo Apostólico nem os Dez Mandamentos, não cantamos o cântico de Simeão após a ceia do Senhor, nem temos uma pronúncia de absolvição à congregação; além disso, temos algumas orações formadas, mas não tantas quanto Calvino, e usamos acompanhamento instrumental no cântico dos Salmos. E certamente as Igrejas Protestantes Reformadas, com Calvino, fazem todo esforço para basear a adoração na "clara garantia da Escritura", apelando ao invariável "costume da igreja primitiva."16
Possa Deus nos conceder graça para continuar assim, a fim de adorarmos aquele que é Espírito, "em espírito e em verdade" (João 4:24).
Fonte: The Sixteenth-Century Reformation of the Church, David Engelsma (editor), pp. 149-152.
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