Herman Hoeksema
Tradução de Rev. Pedro Corrêa Cabral
Para alguém que está familiarizado com as Escrituras Sagradas, a importância do assunto desse pequeno opúsculo, o Evangelho, será facilmente percebível. Tal assunto é da maior importância em si mesmo, e não simplesmente à luz de considerações de que ele sempre foi e ainda é mal entendido, em relação ao que é e como deve ser pregado. Apenas umas poucas referências bíblicas irão provar tal assertiva. Muito frequentemente, a Bíblia fala sobre o Evangelho direta ou indiretamente, definindo-o como "o evangelho de Deus" (Rm 1:1; II Co 11:7; I Ts 2:8-9; I Pe 4:17). Ou seja, é o evangelho de Deus, não o nosso. O Senhor o concebeu; tornou-o realidade e o proclamou. Consequentemente, se pretendemos pregá-lo, precisamos considerar como sendo de primeiríssima importância aprender diretamente de Deus o que o Evangelho é, qual o seu conteúdo e como deve ser proclamado.
No que se refere ao seu conteúdo, o Evangelho diz respeito ao Filho de Deus (Rm 1:3; Mc 1:1). Daí porque nele o Senhor declara algo sobre o Seu Filho unigênito, e nós devemos nos preocupar para que em nossas apresentações do Evangelho a imagem do Filho não seja distorcida. Esse Evangelho é, por isso mesmo também, chamado de Evangelho de Cristo, ou Evangelho de Jesus Cristo, o ungido Salvador (Rm 15:19; I Co 9:12; II Co 2:12; 9:13; 10:14; Gl 1:17). Ele é ainda definido como o Evangelho da glória do Deus bendito, razão pela qual nossa apresentação não pode ferir ou obscurecer tal glória (1 Tm 1:1), devendo, isto sim, a pregação refletir a luz da glória de Cristo e ser explicitamente declarada (II Co 4:4). Ele é também o Evangelho do Reino (Mt 4:23; 9:35; 24:14), e esse Reino, em sua concepção, origem, realização e futuro, deve ser corretamente exposto sempre que o evangelho for pregado. E além de definições como: O Evangelho da Graça, O Evangelho da Salvação, O Evangelho da Paz (At 20:24; Ef 1:13; 6:15), ele busca ainda introjetar em nossas mentes o fato de que aquele que lida com o Evangelho deve fazê-lo consciente de que é algo divino, muito precioso, exaltado em sua origem e conteúdo, o que pode facilmente ser maculado e corrompido na sua aplicação. Considerando, portanto, que é obrigação da Igreja de Jesus Cristo pregar o Evangelho, este evangelho de Deus, de Seu Filho, de Cristo Jesus, do Reino, da graça, da salvação, da paz, da glória de Deus e de Cristo, a toda criatura, de acordo com o mandamento deixado pelo Senhor; considerando que, em todos os tempos, especialmente nos dias atuais, existem pretensos pregadores que apresentam o evangelho como se ele fosse o mais barato artigo no mercado, prontamente temos que admitir que este assunto é, de fato, da maior importância.
Assim, proponho explanar esta matéria nos seguintes tópicos:
I – O
Evangelho em seu conceito
II - O Evangelho em seu conteúdo
III - O Evangelho em seu cumprimento histórico
IV - O Evangelho em sua apropriada proclamação
A Bíblia emprega, com freqüência, dois termos que estão proximamente relacionados tanto em seus respectivos significados como, também, em suas sonoridades, no original grego. São os vocábulos espangelia e evangelion, o primeiro significando "promessa," e o segundo "evangelho." Que tais termos são semelhantes em nossas mentes fica evidente com maior razão pela expressão comum, freqüentemente usada e empregada pelas nossas confissões, a saber, "a promessa do evangelho". Tal expressão salienta que o evangelho contém uma promessa.
Entretanto, este relacionamento próximo entre "promessa" e "evangelho" tornar-se ainda mais claro e é visto numa diferente perspectiva, se nos debruçamos sobre a Escritura e descobrimos que, de acordo com ela, o evangelho é verdadeiramente o evangelho da promessa. Isso é diretamente expresso em Gl. 3:8 e em At. 13:32. O primeiro texto diz—Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. Observe-se que na última expressão temos a promessa.
Agora, de acordo com o texto, quando a promessa foi feita a Abraão, o evangelho foi pregado a ele. O evangelho e a promessa são, assim, identificados desta maneira, ou seja, a entrega da promessa por Deus a Abraão é por si só a pregação do evangelho. No outro texto, At. 13:32-33 lemos—Nós vos anunciamos o evangelho da promessa feita a nossos pais como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus ...—Fica evidente que a promessa feita aos pais e cumprida em nós, seus filhos, é a mesma que está mencionada em Gálatas 3. Aqui fica igualmente claro que, da mesma forma que na passagem anterior, o apóstolo fala sobre a promessa, como sendo a pregação do evangelho, ou a proclamação das boas novas. O evangelho é, então, em sua essência, de acordo com seu conceito, o evangelho da promessa, e, neste sentido, chamamos a sua atenção, leitor, a fim de que tal evangelho seja divulgado em concordância com a verdade da Escritura.
Muito frequentemente, a Bíblia fala da promessa. Algumas vezes, refere-se a ela no plural, para expressar as riquezas de suas implicações. Contudo, mais amiúde, ela fala no singular para denotar unidade e identidade, mas sempre é a mesma promessa: a promessa que é feita a Abel, a Enoque, a Noé, a Abraão, Isaque e Jacó. Assim, por mencionar estes santos da antiga dispensação, e tendo falado de suas vidas e suas mortes, ou arrebatamento pela fé, o capítulo 11 de Hebreus nos diz no versículo 13—Todos estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra.—E tendo revisto a vida e a batalha pela fé de muitos que formam a nuvem de testemunhas, incluindo-os todos em sua visão, o autor da carta aos Hebreus finalmente afirma no versículo 39—Ora, todos estes que obtiveram bom testemunho por sua fé não obtiveram, contudo, a concretização da promessa ...
Estas passagens deixam claro, em todas elas, que havia uma promessa dada aos santos a qual eles abraçaram e creram, e pela qual viveram e morreram, pela qual estavam dispostos a ser estrangeiros e peregrinos na terra, passar fome, ser exilados e presos, suportar o martírio, a zombaria e toda sorte de sofrimentos. Eles foram mortos a fio de espada e serrados pelo meio, andaram peregrinos vestidos peles de cabras, afligidos, destituídos de seus pertences e atormentados de todas as maneiras. Todavia, na grandeza da fé e severidade do sofrimento desses patriarcas, podemos ver refletida a beleza e a riqueza da promessa que eles tinham e enxergar muito além disso. Gálatas 3 é um clássico capítulo sobre a promessa. Ele enfatiza que tal promessa foi feita a Abraão e à sua descendência, e que a semente do patriarca é central e essencialmente Cristo (v. 16). É óbvio que Cristo, o Descendente, que é o cumprimento da promessa, é, ao mesmo tempo também, o principal receptor dela. Ela afirma que a Lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois da promessa a Abraão, não a pode anular (v. 17); mas Deus concedeu a herança a Abraão pela promessa (v. 18). Chega-se à conclusão que, se somos de Cristo, então somos descendência de Abraão e herdeiros de acordo com a promessa (v. 29).
Quanto ao conteúdo dessa promessa, a Bíblia fala dela como a promessa do Espírito Santo, dada a Cristo (At. 2:33) e àqueles que são dele pela fé (Gl. 3:14); é a promessa de vida (1Tm. 4:8; II Tm. 1:1); a promessa da vida eterna (I Jo. 2:25); a promessa da volta de Cristo (II Pe. 3:4); a promessa de entrar no descanso de Deus (Hb. 4:1); a promessa de ser herdeiro do mundo (Rm. 4:13); a promessa de trazer o Salvador da raiz de Davi (At. 13:23). Por essa razão, a Escritura fala ainda do Espírito como o Espírito da promessa (Ef. 1:13); de filhos da promessa, isto é, de filhos que são nascidos da descendência da promessa, pelo poder e de acordo com ela e sobre os quais ela descansa (Rm. 9:8). A Bíblia chama a atenção para os herdeiros e co-herdeiros da promessa, uma vez que nem todos os homens a receberam (Hb. 6:17, 11:9). E no início da Nova Aliança, a Escritura pontua em Atos 2:39—Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.
Nestas circunstâncias, é importante que entendamos claramente a natureza de uma promessa. Não é de forma alguma o mesmo que uma oferta. Nesta última acepção, a pessoa que faz a oferta declara sua disposição em fazer algo para ou a favor de quem a oferta é feita, mas para sua realização ela depende da disposição da outra parte, do seu consentimento. Entretanto, uma promessa é diferente. É uma declaração escrita ou verbal que compele à pessoa que a fez realizar ou desistir de realizar a coisa prometida. É, assim, um compromisso independente de qualquer dever ou obrigação por parte da pessoa a quem a promessa foi feita. Consequentemente, ela implica na declaração de certo benefício, com a garantia de que tal benefício será aplicado ou realizado a favor da pessoa a quem a promessa está dirigida. Esta garantia, em relação à promessa bíblica, é potencializada pelo fato de que o próprio Deus é quem a fez. Deus concebeu a promessa, logo é Ele quem realiza a coisa prometida. Ele declara a promessa, o que implica, em primeiro lugar, que tal promessa não pode estar condicionada, porque Deus é Deus, e o seu agir, com toda certeza, não pode estar na dependência da vontade da criatura. Em segundo lugar, isso significa que a promessa é tão fiel e verdadeira como Deus é imutável. Ele certamente cumprirá a promessa. Quando Ele se compromete a fazer ou entregar alguma coisa, Ele é obrigado por Ele mesmo e por todos os seus divinos atributos a realizar a promessa para quem ela foi feita, posto que Ele não pode negar a si mesmo.
Esse conceito da promessa, necessariamente, implica que ela é feita a um grupo definido de pessoas. Uma oferta, por outro lado, por ser dependente da aceitação e do consentimento de uma segunda pessoa, pode ser genérica, ou vaga. Uma promessa, no entanto, que compromete a parte promitente e que assegura sua realização, exige a existência de uma definida segunda pessoa. E é desta maneira que a promessa está nas Escrituras. Não obstante, a promessa é feita para Cristo e, através Dele, para a descendência de Abraão, para os filhos da promessa, para aqueles que são chamados herdeiros e co-herdeiros dela. Que este é, certamente, o conceito da promessa está claramente expresso na Escritura. Neste sentido, lemos em Hebreus 6:13-14,17—Pois, quando Deus fez a promessa a Abraão, visto que não tinha ninguém superior por quem jurar, jurou por si mesmo, dizendo: Certamente, te abençoarei e te multiplicarei ... Por isso, Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, se interpôs com juramento.—Assim, para os herdeiros da promessa, ela é inevitável, porque está atrelada ao imutável propósito do Altíssimo.
Assim, o conceito do evangelho é que ele é uma agradável notícia sobre esta promessa de Deus. Agradável notícia de boas novas é o significado da palavra evangelion. Agradável notícia por duas razões: Em primeiro lugar, por causa da miséria atual dos herdeiros da promessa. Eles estão no mundo, e neste mundo estão sujeitos ao pecado e à corrupção, ao sofrimento e à morte. A experiência atual deles é de desespero e de angústia, de aflição e de tormento, de miséria e de gemidos. Mas a promessa assegura-lhes a libertação do presente estado de miséria e de completa pobreza espiritual. Em segundo lugar, o evangelho é agradável notícia porque trata da inefável riqueza da herança que está prometida. Contudo, a promessa não assegura aos herdeiros apenas a libertação do pecado e da morte, como também a restauração a um estado e a uma condição anterior, mas enche seus corações com uma esperança de glória jamais imaginada pelo homem. Compreende-se, portanto, que esta agradável notícia a respeito da promessa somente pode ser concedida por Ele, o Deus poderoso, que concebeu tal promessa. O Senhor proclama a promessa. Ele prega o evangelho. O Evangelho, que fala de coisas que olho algum viu, e ouvido algum ouviu, e que nunca foi concebido pelo coração do homem, somente pode vir através da revelação de Deus. Entretanto, esta revelação de Deus, esta divina proclamação do evangelho, sempre acontece por meio dos homens. Logo, aquele que prega o evangelho pode, com autoridade, declarar, em nome de Deus, a agradável notícia da promessa, sobre a certeza de seu cumprimento, sobre a riqueza de suas bênçãos e sobre o progresso de sua realização na história. Por toda a história da humanidade existem no mundo herdeiros da promessa. Eles conhecem a promessa. Estão ansiosos por ela e esperam por sua realização. Questionam sobre o seu conteúdo e sobre a proximidade de seu completo cumprimento. E aquele que pode responder a esses ansiosos questionamentos e trazer alguma boa notícia sobre a promessa está pregando o evangelho.
Tal assertiva deve determinar, como ficará evidente, o conteúdo do evangelho de Deus. Se ele é as boas novas sobre a promessa, isto é, sobre uma positiva garantia de Deus para a descendência de Abraão, os herdeiros da promessa, que o Senhor irá conferir uma grande bênção e uma gloriosa herança a eles, segue-se que o conteúdo do evangelho deve estar sempre em coerência com o conteúdo da promessa; e aquele que declarar qualquer coisa além de suas preciosas dádivas não esta pregando o evangelho, mas vãs filosofias de homens. Deve ser dessa maneira a certeza da promessa; a tal ponto que aquele que muda esta certeza numa oferta incerta e condicionada está corrompendo a promessa e o evangelho de Deus. Finalmente, aquele que apresenta a matéria como se a promessa de Deus fosse feita a todos os homens, ou a um número incerto de pessoas, não esta pregando o evangelho e está fazendo de Deus um mentiroso. O Senhor não cumpre a promessa exceto para aqueles a quem ela foi feita, isto é, para a descendência de Abraão, os herdeiros de acordo com a eleição da graça.
Agora, o conteúdo da promessa, de acordo com a Escritura, é Cristo todas suas riquezas de salvação e bênção. Pois, o conteúdo é promessa que Deus levantaria um Salvador da descendência de Davi; que essa descendência iria levar sobre si os pecados de Seu povo; e que Deus iria fazê-Lo ressurgir dos mortos e dar Lhe a glória, exaltando-O no trono de Seu pai Davi, e Lhe dando os confins da terra como Sua possessão. Ele é a Semente prometida. A promessa, conseqüentemente, em concordância com a Bíblia, implica a garantia de retidão e paz, de perdão e filiação, de libertação e santificação, de vida eterna e glória, da incorruptível e indefinível herança que não acaba. Isso envolve Cristo e todos que Nele estão, posto que serão herdeiros do mundo, herdeiros do novo reino celestial, onde habitarão no tabernáculo de Deus para todo o sempre.
Desta forma, a promessa implica ainda o presente do Espírito Santo, primeiro a Cristo, depois àqueles que pertencem a Ele, e pelo Espírito todas as bênçãos de Cristo podem ser realizadas na igreja. Assim, é um erro apresentar o assunto, como se Deus tivesse simplesmente prometido a bênção objetiva da salvação para a descendência de Abraão, ou mesmo para os homens de maneira geral, como se dependesse de seus consentimentos para a promessa ser cumprida neles. Definitivamente, o dom do Santo Espírito está incluído na promessa. Ele é promessa de Deus, é a promessa de que Deus derramará Seu Espírito sobre toda carne. E através do Espírito, Ele efetivamente coloca a salvação em Cristo no coração de todo o Seu povo, por meio da regeneração, do chamado, da fé, da justificação, da santificação, da perseverança e da glorificação. Através do Espírito, eles são trazidos das trevas para a luz, e são mantidos no poder de Deus até a salvação que é para ser revelada no final dos tempos. Tudo isso está incluído na promessa, isto é, na declaração positiva por parte de Deus de que Ele, certamente, irá honrar estas bênçãos e bem-aventuranças da salvação em todo o Seu povo.
Esta promessa é, ao mesmo tempo, o conteúdo do evangelho. É o evangelho de Deus, evangelho que Ele sozinho é o Autor e que Ele proclama. Só Ele é capaz de declará-lo, ainda que revelado e pregado por meio de homens. Como seu conteúdo é o evangelho referente a Seu Filho, o Evangelho de Cristo, assim somente o Senhor Jesus pode ser pregado na proclamação desse evangelho. Por essa razão, é também o evangelho da glória do Deus bendito, através do qual e pelo qual Cristo, a glória dessa bênção, é revelado. Foi por esse evangelho que Deus deu a Cristo e a todos que Lhe pertencem a Sua própria glória.
Essa glória do Deus bendito, através da glória de Cristo e da igreja da qual Ele é o cabeça, deve ser realizada no evangelho. É o evangelho do Reino, pois o Reino do céu, em sua realização final e espiritual, é o fim da promessa que precisa ser proclamada. É o evangelho da graça de Deus, posto que todas as obras Dele, em nome da realização da promessa, são uma manifestação de Sua soberana graça, soberana em sua concepção, soberana em sua manifestação objetiva de Cristo, soberana em sua aplicação ao Seu povo. É o evangelho da paz, uma vez que nele o Senhor dos céus publica paz e leva boas novas. E, finalmente, é o evangelho da nossa salvação, posto que ele declara a plenitude da nossa salvação do pecado e da morte, e nossa entrada na gloriosa liberdade de filhos de Deus.
Chegamos, pois, à conclusão, com base na Palavra de Deus, a qual sozinha pode ser a nossa luz, que o evangelho é notícia agradável a respeito da promessa da nossa salvação, verdadeira promessa de Deus de que Ele nos livra de todos os pecados e culpas, da corrupção e da morte, e nos leva para a mais alta, ou melhor, para a mais humanamente inconcebível felicidade de Seu prometido Reino Celestial. O evangelho declara: (1) que Deus, objetivamente, realiza, em e através de Cristo Jesus, de Sua humilhação e exaltação, toda a plenitude da Sua salvação; (2) que Deus, subjetivamente, realiza e aplica todas as bênçãos da salvação através do Espírito da promessa; (3) que Ele realiza sua obra de salvação em quem Ele quer, isto é, em Seu povo, os eleitos, aqueles que crêem em Cristo, os humildes e de coração quebrantado, os cansados e oprimidos, todos aqueles que pranteiam em Sião.
Com relação ao cumprimento histórico do evangelho da promessa, precisamos, antes de qualquer coisa, observar que dois fatores são simultâneos. Em primeiro lugar, Deus realiza o conteúdo da promessa, a herança prometida, historicamente, passo a passo. Em segundo lugar, como a realização da promessa avança e se aproxima de sua consumação, Ele também a declara, proclama o evangelho e revela ao Seu povo a obra da salvação. Ou seja, Ele explica ao Seu povo a obra da salvação passo a passo e, ao mesmo tempo, os dirige para frente, nos mais claros termos da revelação para a herança final que será consumada no dia em que a promessa for plenamente cumprida.
Tendo isso em mente, chamamos a atenção, antes de tudo, para o evangelho na antiga dispensação. No primeiro Paraíso, havia, sem dúvida, uma imagem da promessa, uma figura terrena das coisas celestiais que Deus prepararia para Seu povo em Cristo Jesus. Porque, ali o tabernáculo de Deus estava com os homens. O primeiro homem, da terra, é terreno, mas é, não obstante, uma imagem do segundo. O Paraíso é uma imagem do tabernáculo celestial de Deus, e a árvore da vida é uma figura da eterna árvore da vida na nova criação. O sol brilhou intensamente, mas com esplendor terreno na manhã da criação. Contudo, o sol se pôs, as primeiras coisas passaram, e a noite do pecado e da morte tomou conta do mundo. O primeiro homem, Adão, não se manteve fiel à promessa de Deus; caiu no escuro abismo do pecado e da culpa, do qual jamais poderia salvar a si mesmo.
E em seus lombos estavam os eleitos. Esses eleitos, a igreja de Cristo, ele arrastou consigo em sua queda. Contudo, Deus havia provido algo melhor para Seu povo, uma coisa melhor que não podia de outra maneira ser realizada, a não ser por meio dessa noite de pecado e morte. Nesse sentido, Ele colocou inimizade entre o homem e a descendência da serpente. Ele realizou Sua Promessa eterna. E como Ele a realizou, também imediatamente a proclamou ao Seu povo naquela que foi a mãe de todas as promessas:—Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn 3:15).
Daí por diante, os filhos da promessa teriam que caminhar na noite. Mas na noite, eles caminhavam na luz da promessa, e, caminhando nessa luz, eles viveram em esperança e esforçaram-se para a realização daquela promessa. Assim, na luz da promessa e nessa esperança, tiveram filhos, sempre buscando o Descendente da promessa. Na luz dessa promessa e na força dessa esperança, a qual é a substância de todas as suas vidas, eles esforçaram-se e lutaram, condenaram o mundo, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra e estavam em busca da cidade cujas fundações e cujo construtor é Deus.
Frequentemente, parecia escuro, muito escuro para a realização da promessa e para os herdeiros do reino no mundo. Havia trevas naquele mundo pré-diluviano, onde a igreja era perseguida, embora pequena, restando apenas oito almas. Mas eles se sustentaram na promessa e receberam a vitória. Em Noé, a igreja tornou-se herdeira do mundo em retidão. Daí em diante a terra não seria mais amaldiçoada. A graça penetrou com sua luz bendita por entre as trevas da ira de Deus e desenhou um belo arco-íris pelo firmamento, a promessa de vitória final para Noé e sua família.
As trevas apareceram quando o mundo se reuniu em volta da torre de Babel, e mais tarde, quando Deus separou Abraão, Seu amigo, para ir para uma terra que Ele lhe mostraria. Mas Abraão creu em Deus e isso contou para ele como justiça. Entretanto, ele, Isaque e Jacó jamais possuíram um metro sequer de chão na terra prometida, embora tivessem vivido na esperança e morrido na fé de possuiriam a terra de Canaã. E eles, de fato, iriam possuí-la. Não podemos dizer que Abraão e sua descendência não possuiriam a terra de Canaã, posto que as promessas de Deus são sim e amém em Cristo. Apenas isso: os judeus não são descendência de Abraão, mas sim Cristo e o Seu povo. E mais, aquela terra no Mediterrâneo não é a Terra Prometida, porque eles todos buscam uma melhor, isto é, uma pátria celestial.
Parecia trevas quando os herdeiros da promessa foram ameaçados de extinção no Egito. Mas eles tinham a promessa, e Deus revelou que avançaria para a realização dela. E Ele, de fato, realizou o evangelho como o pregou para eles. Ele os libertou com uma mão poderosa, recebeu-os em Sua promessa, deu-lhes a terra prometida, e lá, mostrou-lhes por uma figura, em todos os lugares, a referida promessa.
No profeta, no sacerdote, no rei, na terra e em seus frutos, no altar, no sacrifício e no serviço do santuário em geral, em tudo que viram, que fizeram e que receberam, tinham o glorioso evangelho da promessa pregado para eles. Nessa promessa, eles viveram em esperança, quando gradualmente as sombras desapareciam, a cidade santa foi destruída, o templo foi queimado e os herdeiros da promessa choraram e lamentaram numa terra estranha. Trevas foi o período do cativeiro babilônico, pois parecia que Deus havia esquecido a promessa. Mas a luz do evangelho reluziu mais brilhante à medida que a noite tornava-se mais escura. Esperando pelo impossível, eles olhavam pra frente. Eles perguntariam:—Guarda, a que horas estamos da noite? Você tem alguma notícia da promessa? Quando virá o amanhecer? Quando a manhã da promessa romperá nossa triste noite? E sempre através da noite, tornando-se mais escuro ainda depois do retorno da Babilônia, eles foram salvos pela esperança.
É, sem dúvida, nesse pano de fundo escuro, que nós devemos visualizar a alegria dos pastores nos campos de Belém, mantendo a vigília noturna sobre seus rebanhos. Era escuro em respeito à promessa, e esse pastores viviam na esperança da promessa. Talvez, naquela mesma hora, eles estivessem lamentando a miséria de Israel e cogitando sobre o tempo de cumprimento da promessa. Que alegria, então, quando, não um profeta humano, mas um anjo foi o agente de Deus para pregar o evangelho para eles. Deus falou a Sião:—Levantem-se! Sejam iluminados! Emanuel, o prometido e o tão esperado descendente nasceu de uma virgem, da descendência de Davi, de acordo com a promessa. Seu povo precisa saber disso!—E assim, Deus pregou para eles através de Seu anjo, e lhes trouxe as boas notícias de grande alegria sobre a promessa, especialmente pontuando que ela havia sido cumprida. Ele nasceu!
E uma vez mais cresceu a escuridão, impressionantemente escura, quando Ele, sobre quem eles depositavam a esperança de que Israel seria libertado, embora não compreendessem a natureza e a maneira dessa libertação, morreu crucificado, sob a ira de Seus inimigos, nas trevas do sangrento madeiro. Todavia, Deus realizou a promessa. Ele ressuscitou Jesus dentre os mortos para nossa justificação, exaltou-O nos mais altos céus, e deu-Lhe um lugar à Sua direita. E deu-Lhe o Espírito da Promessa, o mesmo que Ele colocou em Sua igreja. Por esse Espírito da Promessa, o Senhor realiza todas as bênçãos dela sobre todos os eleitos. Deus explica sempre ao Seu povo a obra da Sua graça, declarando-lhes o abençoado evangelho, agradáveis notícias sobre a promessa, a qual agora está cumprida e que o Reino dos céus está de fato chegando!
Mesmo agora a promessa não atingiu sua consumação final. Os herdeiros da promessa ainda estão no mundo. Eles ainda estão caminhando como peregrinos da noite. Eles ainda são estrangeiros no mundo e buscam as coisas do alto. Eles ainda são assassinados todos os dias, e Deus poderia ser envergonhado, por ser chamado de seu Deus, não fosse pelo fato de que Ele está lhes preparando uma cidade, a Jerusalém celestial. E a vinda, a realização final desta cidade e a beleza de sua glória, Ele declara aos herdeiros da promessa, enquanto eles estão no meio da escuridão da noite atual, a fim de que, mesmo agora, eles possam caminhar em esperança e levantar a cabeça na expectativa do cumprimento da glória prometida com um juramento do Deus da Salvação! O Evangelho são as boas novas da promessa e alcança a cidade celestial que desce de Deus!
Mesmo antes do que foi dito, fica perfeitamente evidente que, até onde diz respeito à proclamação do evangelho, ele não pode ser nunca uma oferta de salvação. O evangelho são as boas novas da promessa que Deus nos dá. Deve ser, portanto, pregado e proclamado, mas jamais oferecido. Ele é apresentado na Bíblia sempre dessa maneira. Jesus prega o evangelho do Reino (Mt 4:23; 9:35; 24:14). Paulo pregou o evangelho entre os gentios (Gl 2:2); ele pregou o evangelho de Deus entre os tessalonicenses (I Ts 2:8-9). Ou, ele falou para eles do evangelho de Deus em meio a muita luta (I Ts 2:2). Ou, outra vez, ele testificou do evangelho da graça de Deus (At 20:24). E mais, freqüentemente, a palavra "evangelizar" ou a expressão "declarar boas novas" é usada para denotar a pregação do evangelho de Deus em Cristo (I Co 15:1; II Co 11:7; Gl 1:11; Ap 14:6). Entretanto, nunca encontramos, em toda a Palavra de Deus, que o evangelho é oferecido, ou que apresenta a promessa de Deus como uma bem-intencionada oferta de salvação para todos os que ouvem a pregação. Isto, certamente, é uma invenção humana.
E como pontuamos anteriormente, isso é razoável. Uma promessa não pode ser oferecida. Uma oferta é uma proposição condicional. Depende do consentimento do homem. Mas uma promessa é garantida por quem prometeu. Isto é, especial e enfaticamente, verdadeiro em relação à promessa do evangelho. Em primeiro lugar, é assim porque é Deus quem promete e Ele não pode mentir. Ele é fiel e verdadeiro, razão pela qual, certamente, cumprirá sua palavra. Em segundo lugar, é assim porque as coisas prometidas não podem ser realizadas, nem em parte, pelos homens. Se o evangelho fosse a pregação de uma oferta condicional, não existiria nada na condição que o homem tenha possibilidade de cumprir. Ele não pode por si mesmo crer na promessa. Não pode por si mesmo nem sequer querer crer em Cristo. Não pode se arrepender e voltar para Deus, a menos que o Senhor primeiro cumpra a promessa nele. Em outras palavras, a promessa de Deus ou é incondicional, ou é impossível de ser cumprida. Em terceiro lugar, a promessa é dada, não para todos, mas para um determinado grupo de pessoas, a descendência de Abraão, para aqueles que são de Cristo, para aqueles que foram, pela soberana graça, eleitos para a salvação antes da fundação do mundo.
Isso me leva à minha observação final, a saber, que a pregação do evangelho precisa ser tal que ela aponte, definitivamente, para aqueles para quem a promessa se destina. Um evangelho para todos é um evangelho para ninguém. Isso pode aliviar a consciência do ímpio e mandá-lo para o inferno com uma falsa esperança, porém tal assertiva não conforta o eleito, pela simples razão de que tal pregação não se reporta a eles como herdeiros da promessa. O evangelho deve ser, assim, pregado de tal maneira que declare, definitivamente, aos herdeiros da promessa que é para eles tal pregação.
Sem dúvida, não me entendam mal, o evangelho especificamente deve ser proclamado para que todos o ouçam. Em parte, porque não sabemos quem são os eleitos; em parte, porque é da vontade de Deus que mesmo o condenado ouça o evangelho da salvação a título de fé e arrependimento, para que o pecado possa mostrar-se, de fato, como pecado. Neste sentido, o evangelho em sua pregação deve ser geral. Todavia, nessa pregação geral, os herdeiros da promessa devem ser chamados pelo nome, a fim de que possam saber que as infalíveis misericórdias de Davi são também para eles. Não se trata, é claro, de que eles sejam mencionados por seus nomes naturais. Mas Deus lhes dá um novo nome, sob e através da pregação do evangelho, um nome espiritual pelo qual podem saber que o Senhor tem em mente a promessa para eles. Objetivamente, eles são os eleitos, porém, de acordo com seus nomes espirituais, escritos pelo Santo Espírito em seus corações, eles são os cansados e sobrecarregados, aqueles que estão famintos e sedentos de justiça, os pobres de espírito, os que choram, os de coração contrito e quebrantado, aqueles que aprenderam a colocar todas as suas esperanças e expectativas unicamente no sangue de Jesus Cristo, o Senhor, que os amou e morreu por eles, que foi ressuscitado para justificá-los! Para eles a promessa de Deus é sim e amém. Eles não serão jamais envergonhados. Eles serão mantidos no poder de Deus até a salvação, prontos para serem revelados no final dos tempos.
A pregação do evangelho, certamente, deve ser conforto para os que choram, para que possam ter luz nas trevas e a alegria da esperança no meio dos sofrimentos dessa fatigante e atual noite.
Fonte (original): "The Gospel"
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