Ronald Hanko
O calvinismo histórico e confessional confessa não apenas a doutrina da eleição, mas também a reprovação ou preterição. As duas juntas são chamadas de dupla predestinação.
Os Cânones de Dort, os originais cinco pontos do Calvinismo, ensinam a doutrina da reprovação como sendo parte da doutrina da predestinação no capítulo I, artigo XV:
"A Escritura Sagrada mostra e recomenda a nós esta graça eterna e imerecida sobre nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos os homens são eleitos, mas que alguns não o são, ou seja, são passados na eleição eterna de Deus. De acordo com seu soberano, justo, irrepreensível e imutável bom propósito, Deus decidiu deixá-los na miséria comum em que se lançaram por sua própria culpa, não lhes concedendo a fé salvadora e a graça da conversão. Para mostrar sua justiça, decidiu deixá-los em seus próprios caminhos e debaixo do seu justo julgamento, e finalmente condená-los e puni-los eternamente, não apenas por causa da sua incredulidade, mas também por todos os seus pecados, para mostrar sua justiça. Este é o decreto da reprovação, o que não torna Deus o autor do pecado (tal pensamento é blasfêmia), mas O declara o temível, irrepreensível e justo Juiz e vingador do pecado" 1.
A Confissão de Fé de Westminster ensina a reprovação juntamente com a eleição no capítulo III, artigos III e VII:
"Pelo decreto de Deus e para manifestação da Sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para a morte eterna.
Segundo o inescrutável conselho da Sua própria vontade, pela qual Ele concede ou recusa misericórdia como Lhe apraz, para a glória do Seu soberano poder sobre as Suas criaturas, o resto dos homens, para louvor da Sua gloriosa justiça, foi Deus servido não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa dos seus pecados" 2.
Então, vamos rever brevemente os pontos essenciais da doutrina da reprovação.
Primeiro, a reprovação, assim como a eleição, é um decreto de Deus. Não é um ato de Deus na história. Não é uma reação temporal de Deus aos pecados dos homens. Assim como a eleição, a reprovação é eterna.
Segundo, ela é livre e incondicional. Ela não se baseia em uma previsão da incredulidade, assim como a eleição também não se baseia em uma previsão da crença. A Confissão de Fé de Westminster enfaticamente repudia a reprovação condicional no Capítulo III, artigo II 3.
Terceiro, a reprovação é um decreto sobre pessoas específicas: Esaú, Faraó (Rm 9:13, 17); Judas (Jo 13:18, At 1:25); Hofni e Finéias, os dois filhos de Eli (1Sm 2:25 ) etc. A reprovação não é apenas um decreto geral para condenar quem quer que no momento não creia. Nesse aspecto, ela também é como a eleição, é pessoal.
Estes são os fundamentos da doutrina reformada da reprovação. Todos estes pontos juntos enfatizam que a reprovação, juntamente com a eleição, é soberana.
Esta doutrina é seriamente negligenciada nas igrejas reformadas de hoje. Ela é raramente mencionada na pregação. Há pouco ou quase nada escrito sobre ela na literatura reformada. Esta doutrina é tão obscurecida hoje em dia, que é com alguma surpresa que se encontra um capítulo inteiro sobre o assunto em um livro como o Chosen by God [Publicado em português com o título: Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã] de R. C. Sproul. Muitos que estão familiarizados com o calvinismo, ainda assim teriam que dizer (assim como os discípulos em Éfeso - At 19:1-2): "Nós nem sequer ouvimos falar que havia qualquer reprovação", quando ouvissem sobre esta doutrina.
Estamos convencidos de que uma das razões para essa negligência é o fato de que a doutrina da reprovação é incompatível com a ênfase generalizada na oferta sincera do Evangelho. Diante disso, o ensinamento de que Deus, através do Evangelho, pretende e deseja salvar todo aquele que ouve o Evangelho, não é compatível com o ensinamento de que Deus planejou e desejou eternamente que alguns fossem condenados.
Ora, nós cremos que a teologia da oferta sincera também está em conflito com a simplicidade e imutabilidade de Deus, com a depravação total, a redenção particular e a eleição incondicional. Mas, ela não contradiz nenhuma dessas outras doutrinas tão nitidamente quanto a doutrina da reprovação. Reprovação significa exata e explicitamente o oposto da oferta sincera.
Se você perguntar: "O que o pregador deve dizer sobre a intenção de Deus concernente a quem se perde?" A resposta daqueles que ensinam a oferta sincera é: "Deus sinceramente busca a salvação deles através da pregação do Evangelho". A doutrina da reprovação diz: "Deus determinou eternamente e incondicionalmente que eles sejam condenados". Deveria ser evidente que os dois não são de maneira alguma conciliáveis.
O que estes que sustentam a oferta sincera fazem, então? Eles fazem uma das três opções:
Alguns tentam segurar os dois ensinamentos em tensão. R. B. Kuiper em seu livro, God-Centered Evangelism [Evangelismo Centrado em Deus], tenta fazer exatamente isso.
Com respeito a óbvia contradição entre eles, ele diz:
"Tem sido argumentado que esta doutrina (da reprovação) exclui a oferta universal e sincera do Evangelho. Se Deus decretou desde a eternidade que alguns homens pereceriam eternamente, diz-se ser inconcebível que Ele sinceramente convide a todos, sem distinção para a vida eterna."4
Qual é a solução que ele dá? Esta:
"Podemos também admitir, na verdade, isso precisa ser admitido, que esses ensinamentos não podem ser reconciliáveis um com o outro por meio da razão humana. Até onde a lógica humana pode alcançar, um descarta o outro. No entanto, a aceitação de qualquer um à exclusão do outro se mostra desapropriado por ser racionalismo. A infalível Palavra de Deus é a norma para a verdade, e não a razão humana. A Palavra contém muitos paradoxos. O exemplo clássico é o da soberania divina e a responsabilidade humana. Os dois ensinamentos agora sob consideração também promulgam um impressionante paradoxo. Destruir um paradoxo bíblico rejeitando um de seus elementos, é colocar a lógica humana acima da Palavra divina." 5
Nós não temos muita estima por este tipo de "teologia do paradoxo". Nós cremos que:
Barth e seus discípulos ensinavam que a "verdade" não precisava fazer sentido ou significar alguma coisa. Pode haver contradições e erros até mesmo na Escritura, mas isso não importa, já que a fé não tem nada a ver com entendimento. Na verdade, tentar entender e "organizar as coisas" — tentar dar sentido a elas — é destruir a fé. Assim, podemos "acreditar" que Deus pode ser mutável e imutável ao mesmo tempo. Ele pode eleger e reprovar nosso Senhor Jesus Cristo e todos os homens com Ele. A salvação pode ser para alguns e, ao mesmo tempo, para todos. A fé, como uma espécie de "salto ao desconhecido", não deve tentar entender, mas crer.
Certamente aqueles que defendem a oferta sincera iriam rejeitar as acusações de neo-ortodoxia. No entanto, ao aceitar a idéia de que pode haver paradoxos, contradições e desarmonias em Deus e em Sua Palavra, eles, porém, aceitam a premissa fundamental da neo-ortodoxia.
Além disso, na prática, a doutrina da reprovação recebe pouquíssima atenção daqueles que estão tentando sustentá-la em tensão com a idéia de que Deus sinceramente deseja e procura a salvação de todos os homens por meio do Evangelho. Quem, na pregação e ensino, mesmo que acredite na reprovação, está disposto a dar uma longa, abstrata e tediosa explicação de que isso é possível porque existem duas vontades em Deus e de que alguma maneira isso não contradiz Sua unidade, simplicidade, e imutabilidade? É mais fácil apenas deixar de lado a doutrina da reprovação, especialmente por ela ser tão complicada. E isso é exatamente o que acontece. A doutrina bíblica da reprovação é negada com mais freqüência pelo silêncio total do que pelas calúnias dos que a odeiam.
O silêncio é a segunda forma de lidar com a contradição entre a reprovação e a oferta sincera: silêncio. A doutrina da reprovação é simplesmente encoberta e nunca mencionada como se fosse uma espécie de "esqueleto" no armário reformado. Um bom exemplo dessa abordagem é encontrada no que a editora "Banner of Truth Trust" fez com o formidável livro de Arthur W. Pink, The Sovereignty of God [Publicado em português com o título: A Soberania de Deus. Editora Fiel7].
Muitos nem sequer sabem que a edição deste livro feita pela editora, removeu por completo o capítulo de Pink sobre a reprovação, originalmente capítulo 5: "A Soberania de Deus na Reprovação", sem nem sequer um indício do fato (em sua biografia sobre Pink, Ian Murray apenas menciona que certo material foi editado). É verdade que a editora e o Sr. Murray tentam justificar essa e outras omissões, mas realmente não há nenhuma outra explicação além de que eles desejavam que o testemunho da Escritura a respeito da doutrina da reprovação fosse silenciado.
Ao deixar de fora todo este capítulo, fica a pergunta se é ético editar as obras de um homem dessa maneira, especialmente quando se deixa a impressão de que a edição envolve apenas algumas mudanças bem pequenas. Deixaremos essa pergunta de lado por hora. O que queremos mostrar é que a explicação de Murray quanto a omissão da doutrina da reprovação é furada.
Em sua biografia sobre Pink ele tenta justificar a omissão, dizendo que o fez em razão de uma suposta mudança na visão de Pink sobre a oferta sincera e a responsabilidade humana. É no mínimo interessante mencionar que Murray usa especialmente a oferta sincera, colocando-a em primeiro lugar, para justificar a omissão do capítulo sobre a reprovação, e isto apesar do fato de que o capítulo sobre a reprovação nem sequer mencionar a oferta do Evangelho.
No que diz respeito à responsabilidade humana, o capítulo sobre a reprovação inclui uma forte defesa da responsabilidade humana, uma das mais fortes do livro. Pink certamente não via conflito nenhum entre a responsabilidade humana e a reprovação. E não existe evidência alguma de que Pink algum dia tenha mudado sua forte convicção da soberana, dupla e incondicional reprovação. Logo, todas as tentativas de Murray de justificar a omissão da doutrina da reprovação na edição do livro caem por terra. Portanto, com base na "explicação" de Murray , é demais pensar que a omissão se deve a forte ênfase da editora na oferta sincera?
Este tipo de encobrimento é muito predominante. Seria muito difícil afirmar a partir das coleções de escritos da maioria dos autores reformados modernos, ou a partir das coleções de sermões da maioria dos pregadores reformados, que eles acreditam na doutrina da reprovação, se de fato acreditam. Ela é, na maioria dos casos, deliberadamente ou não, uma doutrina negada pelo silêncio absoluto.
No entanto, também há aqueles que resolvem o dilema tentando sustentar a reprovação e a oferta sincera, negando ou comprometendo a doutrina da reprovação. O teólogo holandês G. C. Berkouwer faz isso. Ele ensina que a rejeição (ou seja, reprovação), não é nada mais do que a resposta de Deus ao pecado do homem:
"O mais proeminente, a este respeito, é o fato de que a Escritura fala repetidamente da rejeição de Deus como uma resposta divina à história, como uma reação ao pecado e a desobediência do homem, e não como sua causa." 8
Ele faz isso também, a fim de manter "uma oferta geral da graça" no Evangelho, assim como o seu livro mostra claramente nos capítulos 6 e 7.
James Daane, um teólogo "reformado" do Seminário Teológico Fuller disse a mesma coisa:
"Isto significa que qualquer doutrina da reprovação é ilegítima por padrões bíblicos, exceto aquela que o ensino bíblico confirma: aquele que rejeita a Deus, Deus o rejeita."9
Ele também condena a teologia decretiva porque esta entra em conflito com uma universalidade distinta da graça no Evangelho:
"No entanto, o compromisso com o decreto da teologia decretiva tem o seu custo: Deus perde Sua liberdade, Cristo é privado de Sua preeminência nos propósitos decretados por Deus, e o Evangelho é tão restritivamente definido, que a igreja já não é mais livre para pregar a mensagem como boas novas a ‘todas as nações e a toda criatura’."10
Outros comprometem a doutrina, ensinando uma reprovação condicional, ou seja, que Deus eternamente rejeitou alguns, porque Ele viu e soube antecipadamente a incredulidade deles. Um exemplo de tal ensino é encontrado nos escritos de D. S. Clark.
"Quando o arminiano diz que a fé e as obras constituem o fundamento da eleição, nós discordamos, mas se ele diz que a incredulidade e a desobediência prevista constituem o fundamento da reprovação, nós prontamente concordamos." 11
Mas este é um ensinamento arminiano explicitamente rejeitado nos Cânones de Dort. A verdadeira doutrina sobre eleição e reprovação foi explicada, o Sínodo rejeita o erro daqueles que ensinam que:
"Deus não decidiu simplesmente com base em Sua justa vontade, deixar ninguém na queda de Adão e no estado comum de pecado e condenação. Nem decidiu passar ninguém quando deu a graça, necessária para fé e conversão." 12
A Confissão de Fé de Westminster também rejeita a reprovação condicional ao insistir que tanto a eleição quanto a reprovação são "livres", e ao declarar claramente que:
"Ainda que Deus saiba tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as circunstâncias imagináveis, Ele não decreta coisa alguma por havê-la previsto como futura, ou como coisa que havia de acontecer em tais e tais condições."13
Por fim, há outros que só ensinam a predestinação única, a eleição para a vida. A estes se aplicam as palavras de Boettner:
"Aqueles que sustentam a doutrina da eleição, mas negam a reprovação não podem reivindicar consistência. Afirmar o primeiro enquanto se nega o último faz o decreto da predestinação um decreto ilógico e parcial. O credo que afirma o primeiro e nega o último, será como uma águia ferida que tenta voar com apenas uma asa. Com interesse em um 'calvinismo moderado' alguns têm ficado propensos a desistir da doutrina da reprovação, e este termo (em si muito inocente) tem sido a brecha para ataques nocivos contra o puro e simples calvinismo. 'Calvinismo moderado' é sinônimo de calvinismo doentio, e a doença, se não for curada, é o começo do fim." 14
É claro que nem todos que comprometem a doutrina da dupla predestinação o fazem com interesse na " teologia " da oferta sincera. No entanto, até mesmo eles destroem um dos grandes baluartes que se opõem contra o ensino antibíblico e perigoso de que Deus ama e deseja salvar todos os homens.
As citações e exemplos poderiam ser multiplicados, mas o ponto está claro. A doutrina bíblica da reprovação e a doutrina antibíblica da oferta sincera da graça no Evangelho não são compatíveis. O abandono generalizado e a negação da doutrina bíblica da reprovação se dá em grande proporção à adoção da oferta sincera como sendo uma explicação sobre o que Deus diz no Evangelho. Não há como sustentar ambos em tensão. Alguma parte tem que ceder. E na igreja de hoje em dia, é a doutrina da soberana, incondicional e dupla predestinação que tem cedido.
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Tradução | Thiago McHertt
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